Entre o chassi e a parede, nas bordas da mirada, no fundo da imagem, mistério. A paisagem não tem fim e começa sempre pelo meio; pelo lugar de breve duração criado entre o observador e aquilo que mira. Imagem inventada, só existe para quem a observa, se não fosse assim, seria natureza e existiria independentemente de ser reapresentada por um sujeito. Me aproximo dela de maneira silenciosa, como faço em qualquer encontro; acredito que haja algo para descobrir no silêncio, algo singelo, e muito importante, e talvez por isso, ela se aproxime de mim no mesmo passo. Eu a observo de forma grave, numa baixa frequência de som, tempo, luz e cor. O encontro é mesmo uma ferida, que só permanece aberta enquanto silenciosamente a suportamos. Nada é superfície e tudo está velado, nada parece, nada aparece, tão perto. Suportar o encontro, procurar a paisagem, é tão somente adiar seu fim, e o que resta depois do fim é esse lugar de paragem, lugar velado, a ferida cicatrizada do encontro; os rastros, os fragmentos, a própria memória. As imagens nunca me alcançam inteiras depois do fim. Tenho apenas breves testemunhos cercados de espaços vazios, ou longos campos de cor onde as formas perdem completamente sua definição e se traduzem em transições entre esses elementos constitutivos. Afinal, a paisagem acontece por aproximação, por fricção, pelo encontro, do sujeito com o objeto, da rocha com a água, da sombra das copas das árvores com os raios de luz do sol que batem no chão. Entretanto, a paisagem, percebida a partir de um dispositivo da visão, funciona numa lógica também de distanciamento, afasto-me para vê-la, distancio nossos corpos, busco esquemas de razão para interpretá-la, mesmo que ela seja percebida no campo das sensações. A perspectiva, esse dispositivo que até hoje impregna toda a relação com as imagens, tão fortemente estabelecido seu lugar na história da representação pictórica, confunde a nossa própria relação com a visão, confunde a forma como observamos, e faz esquecer que o que olhamos - o que se apresenta - não é o mesmo que se encontra representado, e o que representamos, já não é aquilo que é reapresentado a cada vez que um olhar pousa sobre uma imagem. Afinal, essa é uma questão da matéria e da imagem, uma questão do tato e da visão, da experiência e da memória, da imaginação desse lugar sem nome que paira entre os sentidos. Assim é também a palavra, elemento constitutivo do meu trabalho e de muitas paisagens. Não são análogas, a poesia e a paisagem? Imagens criadas por aproximação e distanciamento de elementos para os quais temos um sistema de representação que por vezes não é capaz de abarcar o campo das sensações, que se refazem a cada mirada, que reordenam e nos mostram as coisas do mundo sem que possamos tocálas, e que, por fim, nos permitem acessar o invisível, o indizível e o intocável.
[…]

Oferecer o próprio corpo a ser
arbusto e água corrente
vento já não sei
o que engloba
o que me olha.


Júlia de Carvalho Hansen





A vista venta. Céu turvo, árvores no fundo, arbustos mais perto, pequenos passos nos meus
ouvidos, olho para trás e já faltam duas árvores, a paisagem rasga. Coisas cintilam sobre minha vista.

Quatro cores. Amarelo, marrom, verde, azul. Terra. Uma se transfere sobre a outra, lentamente. Muito perto, muito longe. A paisagem rasga, de novo.

Tenho a imagem do que não vi. O tempo permanece, se estende, dilata. O rio subiu, água forte, fez muito barulho, com certeza. A paisagem rasga, de novo.

Ele me diz que eu fiz uma suspensão no tempo. Restaram apenas a estrada que desaparece entre as árvores e a porteira mal fechada. A paisagem rasga, de novo.

Não encontro nada além do farfalhar das folhas. A paisagem rasga, de novo.

Entre as grades da janela, vejo, quadro por quadro, a vista que tive da primeira vez que fiz essa viagem. A paisagem rasga, de novo.

Tento recriar a imagem, nos ladrilhos da memória. A paisagem rasga, de novo.

Pinto a cena daquele dia ensolarado de água gelada, apago as pessoas. A paisagem rasga, de novo.

Procuro na memória a vista da mata fechada e só posso reproduzir um verde sem contornos. A paisagem rasga, de novo.

Encontro apenas dois lados opostos do céu, não o meio. A paisagem rasga, de novo.

Procuro nessa pedra todas as linhas do rio que a trouxe até aqui. A paisagem rasga, de novo.

Posiciono o véu sobre o verde cintilante. A paisagem rasga, de novo.






[…] matéria-miragem […]

“[…] nunca o mundo, nem por um só segundo, suspendeu seu funcionamento misterioso. […]”
Francis Ponge

Certa vez, num curso de Fenomenologia, me foi apresentada a palavra grega “hyle”. Palavra que para os gregos guardava alguns significados, como o de “madeira”, uma madeira a ser utilizada, como uma lenha, ou uma viga de construção, mas também "floresta", me lembro do professor dizer “[…] bosque, como a vista de um bosque, um verde indefinido, indiscernível […]”. Significava também matéria, como tudo o que é material e como a matéria “fundamental” ou “indiferenciável” ou "primeira", se assim pode ser descrita.

Matéria indiscernível, talvez? Como é mirar a uma floresta?

Os gregos não tinham paisagens, é o que diz Anne Cauquelin. Sua relação com a natureza era utilitária, por assim dizer, como utilizamos a lenha, ou como utilizamos as vigas, ou como um autor se utiliza de um cenário - aqui, um cenário natural - para descrever um acontecimento outro que não a simples presença da natureza.

[…] O objeto paisagem não preexiste à imagem que o constrói para um desígnio discursivo […]
Anne Cauquelin

Ou, as paisagens gregas são como palcos, e sem cenas, não existem. Entretanto, olhavam para a matéria como olhavam para a floresta ao tentar entender o mundo. Mas olhavam para a floresta como olhavam para a lenha. É preciso entender o mundo para pisar, estar, ser sobre o mundo.

Um dos aspectos cruciais da paisagem, sem dúvidas, é a fruição, a sua inegável beleza, esteja ela resplandescente ou em ruínas. O pensamento construído à partir da paisagem é da ordem da sensibilidade, não do discurso. Entretanto, a visão, nosso sentido a ser primeiramente acionado quando queremos conhecer o mundo, é muito turva na floresta. O verde é indiscernível, as árvores se repetem, o canto dos pássaros se espalha, a trilha desaparece, e o horizonte também.

Hyle.

Me parece que estar - com a paisagem - é sempre à espreita. Especialmente quando não há norte, e por consequência não há sul, leste ou oeste, como quando se está na floresta. A constante é a miragem. Quando as coisas aparecem e quando as coisas desaparecem. Quando as coisas se mostram e se escondem. Não somos os únicos com agência; a floresta não é passiva. As duas árvores distantes que parecem anunciar uma clareira atrás da mata fechada desaparecem ao serem fotografadas, o vento - que é ou não é um ser? - se esconde das filmagens. Os pássaros respondem aos meus pés, não aos meus olhos. Não opto pela espreita, o ambiente a instala em mim.






Folhas farfalham sobre um fundo vazio. Me esqueço, há um vazio, algo se esconde. Logo percebo que encontrei. É assim, me dou conta de que algo falta, de que não consigo acessar, de que estou ativamente buscando alguma coisa, uma imagem, uma mirada possível, uma miragem. Então sei que a encontrei. Encontrei mesmo. É extasiante. Estou dividindo com o espaço, e ele comigo. Começa assim minha relação com a paisagem.





É noite, tenho a visão limitada pelos faróis do carro. Tenho sinal no celular, estou acompanhado, agora mesmo estou em uma altura da estrada onde se eu virar minha cabeça pra esquerda, por cima do meu ombro, consigo ver até luzes da cidade mais próxima, mas a sensação de isolamento, de falta de controle, de distância, é tão palpável quanto seria se nenhum dos sinais que acabei de descrever estivessem presentes. Sobretudo a falta de controle. Descemos do carro, não sei o que espera dentro da mata, nunca sei. Eu espero por um encontro, qualquer, que pode também não acontecer. Passos fortes e palmas para acusar a chegada. Finalmente, a clareira.





É como… como se outra coisa habitasse aqui. Olho em volta, trezentos e sessenta graus, silêncio… distância. Existe uma certa sensação de descolamento do corpo, de fragmentação… pedra gelada, sol quente, sombra, horizonte à distância, vegetação, posso andar livremente, posso esticar meu corpo, não conheço os pontos de referência, já não sou sequer capaz de me perder.





A paisagem tem fim?

Mistério é porta aberta pra fazer morada. Rastro é lugar.

Persiste a necessidade de um referencial de distância.

A paisagem tem fim?

Ela começa sempre pelo meio

entre quem observa e aquilo que observa

talvez por isso pareçam tão impenetráveis as paisagens

tão veladas as paisagens

como as palavras, que em um poema adquirem uma nova dicção a cada vez que são lidas.

Só se sabe da própria relação com a paisagem

só se sabe da própria relação com a palavra

há paisagem tocável?

há palavra tocável?

distante, persiste.

As palavras, tocamos com a língua,

as imagens, com os olhos.

Mas não é ilusório esse conceito de toque pela visão?

Sonhei com uma praia escura e silenciosa onde pessoas cegas dormiam dentro do mar.






“Cristais naturais” ou “falar uma palavra é pintar uma pintura”
(um comentário sobre "Critais Naturais", de Francis Ponge)

Acredito que possamos começar pelo fim. Esse texto não tem nada de objetivo e muito menos de linear.

Comecemos então pelo último parágrafo:

“… De modo que basta talvez nomear qualquer coisa, seja qual for - de uma certa maneira - para exprimir tudo do homem…”

Aqui, de alguma forma, parece se conter toda a ideia que o autor trabalha ao longo de sua fala. Essa frase comporta uma dicção - como bem coloca Francis Ponge em seu texto - própria. Dicção no sentido de um tom, de uma maneira de dizer, de uma forma das palavras.

“[…] a maneira de dizer em relação à escolha ou arranjo das palavras. E é claro que nesse segundo sentido, dizer se emprega como equivalente senão de escrever… mas enfim, o sentido de recitar em voz alta se perde, nesse caso - e dizer significa aqui exprimir por palavras, pelo discurso.”

Então a palavra. A ordem das palavras. O tom que uma palavra adquire estando ao lado de uma e não de outra. Ou então sozinha. Ela nomeia ou borra o significado? Adquire forma de nuvem ou de cristal? E não é assim também na imagem?

Ponge opta por dizer que a particularidade da linguagem empregada pelos poetas se da em seu som, em seus sons significativos, que fazem parte de um sistema significante, o que concede às palavras uma peculiaridade, a de que, apesar de se encontrarem em um sistema de significantes, elas jamais comportam apenas um objeto do mundo. Retornamos então à dicção? Em seu sentido verbal, de uma dicção que pode ser pesada, arrastada ou exclamatória e saltitante, o autor coloca que os sons saem de nossas bocas para exprimir nossos sentimentos, e não somente para ocuparem seu papel no conhecido sistema de significantes, os sons não somente nomeiam os objetos.

Me pergunto se o mesmo não ocorre na pintura.

E me pergunto o que tudo isso tem a ver com cristais. E porque, para falar de palavras e significâncias, Ponge se vale da imagem disforme da luz contida em um cristal.

Talvez então, a contensão. O que comporta um cristal?

Imagem da luz contida em um cristal.

A estrutura do cristal, pois, não tem nada de disforme, e como coloca o próprio autor, se dá no encadeamento de átomos iguais que ligados entre si pelas mesmas relações, em seu acúmulo, nos mostra sua forma primeira, ao mesmo passo que parecem aprisionar ali certa luz.

“[…] Talvez porque tenhamos aí algo assim como as melhores aproximações concretas à realidade pura, quer dizer, à ideia pura […]”

Como as palavras, capazes de aprisionar significâncias extensas, os cristais comportam também uma rede de relações.

Depois de ler esse texto, minha primeira anotação foi a seguinte:

“Falar uma palavra é pintar uma pintura.”

Certa vez um professor me disse que minhas pinturas eram como biografemas daquilo que eu observava. Ele é escritor.

Biografema, noção encontrada em Roland Barthes, é como que uma escritura que comporta o que poderia ser a dicção de Ponge, mas não necessariamente aplicada às palavras, mas aplicada às coisas do mundo. É uma escrita que se apresenta em forma de notação do tom das coisas do mundo, da subjetividade das coisas do mundo, como a subjetividade comportada no som que passa pela garganta de quem fala. No caso de Barthes, uma notação que comporta o tom dos autores que analisa. Me parece que essa ideia pode ser aplicada a diversas linguagens, uma delas, a pintura, que como na língua, cria um sistema de significantes.

Anne Cauquelin diz que a paisagem acontece por aproximação. Por relação, então. Por fricção. Por pigmento que encontra outro pigmento e já não é mais somente matéria, como a palavra nunca é sem dicção.

Então a paisagem, a pedra e o cristal. O mutismo das coisas, e a forma como elas adquirem voz, ou a forma como quem observa uma pintura dá voz às coisas, assim como quem lê um poema dá dicção às palavras.