As observações
Telescópio
Há um momento depois que você afasta o olho
em que você esquece onde está
porque viveu por um tempo, parece,
em algum outro lugar, no silêncio do céu noturno.
Você deixou de estar aqui no mundo.
Está num lugar diferente,
um lugar onde a vida humana não significa nada.
Você não é uma criatura em um corpo.
Você existe como as estrelas existem,
participando de sua imobilidade, sua imensidão.
Depois você está outra vez no mundo.
À noite, na colina gelada,
desmontando o telescópio.
Você se dá conta mais tarde
não de que a imagem é falsa
mas de que a relação é falsa.
Você vê outra vez a que distância
está cada coisa de cada outra coisa.[1]
Este texto foi organizado a partir de observações pontuais sobre a produção do pintor Paulo Valeriano. Mesmo sua escolha, adotando a paisagem como assunto de interesse, já implica a observação direta do mundo ao redor e da ideia de um lugar imaginado. A observação é o guia original do processo construtivo da pintura e foi graças a essa atenção que se sistematizou uma abordagem ao ‘problema da pintura’, entendendo-a como linguagem e assunto de pesquisa. Assim, inicio comentando questões mais amplas da pintura:
- A pintura se dá sobre sua própria história e a pertinência de nos dedicarmos a sua construção demanda intuirmos o que falta, o que ela ainda pode ser.
- Escrever sobre outro pintor me permite pensar a pintura em si, mas a escrita é tarefa que demanda tempo, da mesma forma como ocorre com a pintura quando nos dispomos a vê-la. A pressa é infiel e contraditória, pois a origem da pintura está no confronto de pensamentos. É assim que podemos equiparar os termos pensar/pintar.
- Ver pintura implica admitir pensamentos em direção imprevista, sem antecedência. Significa dizer que a matéria original da pintura é o pensamento, ao qual ela nos faz retornar e esse confronto excita deslocamentos. Por permissão ou arroubo podemos ser conduzidos de volta a nós mesmos, como a um lugar.
- Diante de uma boa pintura podemos exclamar elogios, mas será difícil compartilhar seu valor. Não faz sentido tentar explicar sentimentos (a pintura não é sobre isso) ou descrevê-la, pois nada a substitui.
- Tampouco uma imagem reproduzida resgatará o embate entre o meu corpo e o corpo da pintura, a excitação causada entre presenças. E, afinal, estamos onde está nosso olhar. Em sua poesia, Louise Glück[2]observa como nos deslocamos do lugar onde estamos para o lugar para onde olhamos. E mesmo após afastarmos o olhar ainda não retornamos por completo, pois o olhar permanece impregnado.
- Na transposição para o suporte a pintura preserva seu processo como pensamento apreendido, razão porque, ao apontar para uma tela, prefiro dizer ‘aquele trabalho’.
- O que é visível na pintura – assunto, linguagem, serviço, técnica – é apenas aquilo de que ela foi feita. O que de imediato não vemos é a pintura. Ela é feita para o olhar de quem a faz e fica pronta quando se conclui sua possibilidade, tornando-se visível. Até esse momento ela é processo inconcluso, pois qualquer coisa ainda pode ali acontecer. Ela começa a existir exatamente quando terminada, não antes.
É a esse lugar instável que quero retornar para comentar a pintura de Paulo Valeriano, tomando a fragilidade como atributo. Nenhuma fraqueza, apenas a natureza delicada e quebradiça das coisas e das criaturas humanas, a permanente transformação da matéria denunciando o corpo vago, a morte à espera, a vacuidade da vida, a iminente transformação. Um romantismo sem qualquer drama, apenas um fato.
Visitei seu ateliê pela primeira vez há poucos meses e ele me pediu que escrevesse algo sobre seu trabalho, reconhecendo a proximidade de interesses. A empatia determina o aprofundamento do olhar e encaminha a descoberta dos sentidos implícitos e em comum, mas, só agora, no processo que a escrita demanda, dimensiono a qualidade de sua produção.
Persistem no trabalho de Paulo Valeriano a fragilidade da imagem que ameaça desfazer-se e a paisagem reduzida à lembrança, isenta da grandiosidade dos largos espaços reais e da perspectiva arrebatadora. A redução da área de pintura, ocupando apenas um trecho recortado dentro da tela, preserva o trecho por onde podemos avistar uma ideia de paisagem. É o prenúncio de um mundo que ameaça se desmanchar diante de nossos olhos e que não conseguimos acudir: a verdadeira noção de nossa contemporaneidade.
A superfície de tecido esticado em um chassi determina a área quadrangular como espaço onde será contido o assunto de interesse. Um recorte do olhar, um limite para o que ali será organizado. Quando o artista reduz a pintura a uma fração dessa superfície, deixando à vista o tecido ao redor, forma-se um tipo de redemoinho, o olhar transitando ao redor da área pintada. A paisagem restrita a essa área menor comporta-se como fragmento a ser completado e o panorama afunda-se ainda mais distante da realidade a que supostamente se refere, recolhe-se à ideia de paisagem. Apoia-se nas lembranças, destina-se à imaginação, às suposições do que as formas pintadas podem ser.
Paulo Valeriano acrescenta a algumas pinturas uma pequena pedra solta, apenas depositada sobre o chassi. Descansando em uma de suas extremidades, ela pode ser movida ou retirada. É crua e pura, natural, autêntica. Ela é uma verdade (assim como a pintura), algo original que pertence ao assunto paisagem de onde foi retirada. Agora ela transfere sua autenticidade para a pintura, comprovando que o lugar inventado existe. Uma pedra de toque com o poder de nos transportar de volta ou de nos imobilizar. Um continente, um amuleto, o souvenir de um passeio ou apenas uma pedra bonita retendo o desejo de tocar.
Quero me reportar a frases espontâneas de Paulo Valeriano, usando-as como forma de pensar, como guias de leitura, lastro das qualidades que ele alcança em sua dedicação.
1.1 Referindo-se à situação de um duplo convite simultâneo para exposições, comentando sobre o que poderia fazer falta neste ou naquele evento, Paulo me disse:
– Mas não tem problema, eu pinto rápido.
Reporta-se a uma habilidade, não desatenção com o que ele produz, e se refere à opção por uma fatura[3]leve o suficiente para construir o trabalho, aplicada sobre um suporte também delicado. À prima, como historicamente se diz, situação que pressupõe conhecimento dos assuntos de interesse e domínio técnico. O preparo de seus suportes – telas de algodão, linho ou voil – não soma muita matéria, sua paleta de cores é objetiva, e mesmo assim sua pintura sustenta corpo e assunto, embora se faça em serviços mínimos.
A despeito das diferenças, essa economia faz-me lembrar de Volpi[4]. O mestre galgou a situação de domínio entre assunto e técnica, desenvolvendo um processo que pode ser assim resumido: sobre uma base densa como uma parede bem emboçada (em sua origem ele trabalhava com os acabamentos da construção civil), sobrepondo camadas de cobertura ao tecido áspero, até grosseiro, Volpi criava uma superfície densa, sobre a qual definia o assunto com um desenho simples e aplicava a cor em uma camada única, não à toa usando a têmpera, de tal forma que a pintura sobreposta se integra à base, construindo um corpo que nos soa único. Uma clareza de propósitos que reencontro agora, visitando o jovem artista.
1.2 Depois Paulo compartilharia comigo, quase embaraçado, esta constatação:
– Em tudo o que eu pinto, as cores vão se transformando, tudo fica verde.
Significa dizer que a pintura vai nessa direção. As cores escolhidas podem ser verdes e podem se combinar favoravelmente nessa área do espectro de luz, mas a possibilidade de resultar verde na mistura de cores variadas indica a seleção intencional de cores e sugere um direcionamento. Podemos aferir a permissão que o artista concede ao meio – às tintas e diluentes utilizados –, na medida em que admite que as cores manifestem essa direção, porém surpreender-se com isso revela a capacidade de compreender e aceitar que a pintura não se realiza entre comando e controle. Ela mesma conduz. Essa é uma constatação de valor.
É óbvio pensar que a paleta somando o amarelo e o azul insistirá em transitar entre verdes e sua escolha, portanto, está sendo guiada. Afinal de contas, o vermelho não se transforma em verde. Certo? Talvez sim, talvez não. A cor na pintura não é apenas aquela que se aplica ao suporte, mas, fundamentalmente, aquela que lograremos ver. O verde está mais ao centro do espectro de luz visível, enquanto o vermelho, em seu extremo. No entanto, embora entre as cores sólidas (matéricas e pigmentadas) ocorram particularidades, a cor que vemos é resultado da incidência da luz e podemos observar duas situações: a sombra resultante da projeção de luz vermelha sobre um objeto opaco é visivelmente verde e, na situação oposta, a luz verde se sombreia em vermelho. E também, a contraposição de áreas pintadas com pigmentos vermelhos e verdes justapostos, encostados lado a lado, gera um tipo de interferência visível, certo incômodo ao olhar pela excitação de frequências opostas, assim como radicalizado na série Caveat, da pintora Katie van Sherpenberg[5], ao longo dos anos 1980. Isso já havia sido observado por artistas do barroco e é ainda utilizado por restauradores, recorrendo à antiga técnica de cobertura de determinadas áreas com hachuras diagonais, linhas finas justapostas lado a lado, pintadas nas cores vermelho e verde, alternadamente. Resulta, pelo conflito entre as cores, na ilusão ótica do dourado, um efeito de luz. Certa resplandescência que a proximidade das cores pode gerar graças à diferença de frequência em que refletem a luz. Outro aspecto que vale lembrar refere-se à toxidade essencial do pigmento verde. Essas tintas, tanto as de origem vegetal quanto mineral, até o limiar do século XIX eram muito tóxicas, o que determinou a busca por uma alternativa química. O resultado das primeiras tentativas, como o verde de Scheele[6] – que só viria a ser processado em laboratório no limiar do século XIX e alcançou grande sucesso no mercado europeu –, revelou-se também muito venenoso. O verde segue sendo um desafio científico até hoje.
Ao contrário de Paulo Valeriano, o verde encontra-se fora de minha paleta de pintor. Eu o estudei para conseguir abandoná-lo e, exatamente por isso, a pesquisa de Paulo me interessa, por complementaridade. Na pintura aprendemos a valorizar o contraditório, compreendendo-a como coisa inesgotável, permitindo que prevaleçam as qualidades alcançadas, a despeito das questões de gosto, dos assuntos ou das técnicas de interesse.
No encontro seguinte falamos pouco, nada que valesse nota. Porém, me ocorreu que o silêncio faz parte do ateliê e que esse vazio está na pintura. Ademais, conversa-se de muitas maneiras, para além das palavras. Há uma sonoridade de interjeições e o que mais se compartilha é o olhar. O esvaziamento demanda permissão e, quando compartilhado, atesta a capacidade de abrir lugar para um valor e para uma intimidade.
Em outra visita Paulo Valeriano mostrou-me um novo trabalho, maior que os demais, em óleo sobre voil quase transparente, com áreas em verde (como folhagens) e deixando trechos literalmente vazios, onde vemos o tecido e, sob ele, a estrutura do chassi de madeira. Não apenas uma sombra ou um relevo, como acidentalmente poderia acontecer. Vemos a estrutura de bastidor esticando o voil sobre o qual a pintura foi aplicada. Um espaço negativo incorporado como assunto, confrontando-se com as áreas objetivamente pintadas e conceituando o corpo representado: a paisagem. Paulo Valeriano comentou que sabia o que queria pintar, mas pensava em escrever algo. Ele me disse:
– Eu pensei nessa pintura por duas ou três semanas, então eu já a conhecia, mas eu precisava pintar para escrever.
Há uma beleza nessa observação, demonstrando a forma como o pensamento ilumina o trabalho. Uma pintura que advém de escolhas, concretizando ideias que a antecedem e são formuladas no plano abstrato situado antes da voz, no lugar em que o pensamento transita. Não como projeto sobre o qual se decalca o trabalho obediente, mas como processo de aproximação. É assim que a pintura se dá, como negociação, acontecimento simultâneo, encontro. Sua potência se concretiza em suas qualidades, algo que encontraremos sobreposto aos assuntos e alcançado a partir deles. É difícil fazer essa distinção, mas é possível seu avistamento, na eloquência da obra.
Este é outro termo que merece ser especificado. Constitui obra do pintor o conjunto amplo de seus trabalhos em desenvolvimento, situação em que nos referimos ao artista vivo e atuante, mas especialmente a seu legado, quando já se encerrou sua produção. Dessa forma, me parece errôneo referir-me a uma pintura isolada como obra.
Há pouco critiquei a pintura que se decalca sobre um projeto, mas devo fazer um reparo, pois tem cabimento que determinados assuntos definam sua abordagem a partir de um projeto objetivo, organizando o que será produzido. Por exemplo, a figuração heroica, hoje tão em voga, demanda a elaboração de estudos, pela complexidade do assunto e de suas referências ao incluir valores simbólicos. Dessa forma, grandes pinturas são projetadas para viabilizar sua realização, como na série A mesma história nunca é a mesma, de Luiz Zerbini[7]. Não há uma lógica excludente que nos permita invalidar determinada forma do trabalho. Prevalecem a importância da pesquisa e a qualidade do trabalho.
Observamos a paisagem como assunto do pintor Paulo Valeriano, mas devemos considerá-la como circunstância inventada a partir de seu arquétipo, o qual não está restrito aos serviços da pintura em campo, no avistamento de uma perspectiva real. A paisagem que se inventa refere-se diretamente a uma introspecção, imagem do desejo de ser, aprofundando o olhar em direção ao próprio artista. Podemos considerar que qualquer pintura é um autorretrato, mas a paisagem soma mais sentidos, prospectando origem, direção e, literalmente, natureza do sujeito. Essa paisagem inventada funciona como imagem de uma lembrança, acesso direto à memória, mas também como imagem do desejo e do sonho, amplificando as noções de um retrato. Gosto de pensar que imaginar um lugar equivale a explicitar componentes emocionais atávicos e a dar feição à nossa índole. Não mais uma vista sobre a realidade posta à nossa frente e representada por um ideal de fidelidade, mas principalmente o conjunto de observações que tentamos aferir por uma fresta de interioridade que admitimos registrar. Um retorno ao corpo espelhado no mundo e resgatado no trabalho. A paisagem como corpo e o pensamento como lugar.
Ralph Gehre, jan. / fev. 2024.
[1] Louise Glück (1943-2023), poeta norte-americana, Nobel de Literatura de 2020. Telescópio, em Averno, p.147, Poemas 2006 – 2014. Tradução de Heloisa Jahn, Companhia das Letras, 2021.
[2] Idem.
[3] O termo fatura se refere ao modo particular de trabalhar de cada artista.
[4] Alfredo Volpi (1896-1988), pintor ítalo-brasileiro da segunda geração do modernismo.
[5] Mildrid Catharina van Scherpenberg (1940). Artista paulista, é pintora, desenhista, gravadora e professora.
[6] Carl Wilhelm Scheele (1742-1786), químico farmacêutico sueco. O verde de Scheele, ou Schloss Green, foi inventado em 1775 e é, quimicamente, um arsenito de hidrogênio cúprico, relacionado ao verde de Paris.
[7] Luiz Zerbini (1959-), pintor paulista, em mostra individual para o MASP, 2022.
A vista venta. Céu turvo, árvores no fundo, arbustos mais perto, pequenos passos nos meus
ouvidos, olho para trás e já faltam duas árvores, a paisagem rasga. Coisas cintilam sobre minha vista.
Quatro cores. Amarelo, marrom, verde, azul. Terra. Uma se transfere sobre a outra, lentamente. Muito perto, muito longe. A paisagem rasga, de novo.
Tenho a imagem do que não vi. O tempo permanece, se estende, dilata. O rio subiu, água forte, fez muito barulho, com certeza. A paisagem rasga, de novo.
Ele me diz que eu fiz uma suspensão no tempo. Restaram apenas a estrada que desaparece entre as árvores e a porteira mal fechada. A paisagem rasga, de novo.
Não encontro nada além do farfalhar das folhas. A paisagem rasga, de novo.
Entre as grades da janela, vejo, quadro por quadro, a vista que tive da primeira vez que fiz essa viagem. A paisagem rasga, de novo.
Tento recriar a imagem, nos ladrilhos da memória. A paisagem rasga, de novo.
Pinto a cena daquele dia ensolarado de água gelada, apago as pessoas. A paisagem rasga, de novo.
Procuro na memória a vista da mata fechada e só posso reproduzir um verde sem contornos. A paisagem rasga, de novo.
Encontro apenas dois lados opostos do céu, não o meio. A paisagem rasga, de novo.
Procuro nessa pedra todas as linhas do rio que a trouxe até aqui. A paisagem rasga, de novo.
Posiciono o véu sobre o verde cintilante. A paisagem rasga, de novo.
[…] matéria-miragem […]
“[…] nunca o mundo, nem por um só segundo, suspendeu seu funcionamento misterioso. […]”
Francis Ponge
Certa vez, num curso de Fenomenologia, me foi apresentada a palavra grega “hyle”. Palavra que para os gregos guardava alguns significados, como o de “madeira”, uma madeira a ser utilizada, como uma lenha, ou uma viga de construção, mas também "floresta", me lembro do professor dizer “[…] bosque, como a vista de um bosque, um verde indefinido, indiscernível […]”. Significava também matéria, como tudo o que é material e como a matéria “fundamental” ou “indiferenciável” ou "primeira", se assim pode ser descrita.
Matéria indiscernível, talvez? Como é mirar a uma floresta?
Os gregos não tinham paisagens, é o que diz Anne Cauquelin. Sua relação com a natureza era utilitária, por assim dizer, como utilizamos a lenha, ou como utilizamos as vigas, ou como um autor se utiliza de um cenário - aqui, um cenário natural - para descrever um acontecimento outro que não a simples presença da natureza.
[…] O objeto paisagem não preexiste à imagem que o constrói para um desígnio discursivo […]
Anne Cauquelin
Ou, as paisagens gregas são como palcos, e sem cenas, não existem. Entretanto, olhavam para a matéria como olhavam para a floresta ao tentar entender o mundo. Mas olhavam para a floresta como olhavam para a lenha. É preciso entender o mundo para pisar, estar, ser sobre o mundo.
Um dos aspectos cruciais da paisagem, sem dúvidas, é a fruição, a sua inegável beleza, esteja ela resplandescente ou em ruínas. O pensamento construído à partir da paisagem é da ordem da sensibilidade, não do discurso. Entretanto, a visão, nosso sentido a ser primeiramente acionado quando queremos conhecer o mundo, é muito turva na floresta. O verde é indiscernível, as árvores se repetem, o canto dos pássaros se espalha, a trilha desaparece, e o horizonte também.
Hyle.
Me parece que estar - com a paisagem - é sempre à espreita. Especialmente quando não há norte, e por consequência não há sul, leste ou oeste, como quando se está na floresta. A constante é a miragem. Quando as coisas aparecem e quando as coisas desaparecem. Quando as coisas se mostram e se escondem. Não somos os únicos com agência; a floresta não é passiva. As duas árvores distantes que parecem anunciar uma clareira atrás da mata fechada desaparecem ao serem fotografadas, o vento - que é ou não é um ser? - se esconde das filmagens. Os pássaros respondem aos meus pés, não aos meus olhos. Não opto pela espreita, o ambiente a instala em mim.
Folhas farfalham sobre um fundo vazio. Me esqueço, há um vazio, algo se esconde. Logo percebo que encontrei. É assim, me dou conta de que algo falta, de que não consigo acessar, de que estou ativamente buscando alguma coisa, uma imagem, uma mirada possível, uma miragem. Então sei que a encontrei. Encontrei mesmo. É extasiante. Estou dividindo com o espaço, e ele comigo. Começa assim minha relação com a paisagem.
É noite, tenho a visão limitada pelos faróis do carro. Tenho sinal no celular, estou acompanhado, agora mesmo estou em uma altura da estrada onde se eu virar minha cabeça pra esquerda, por cima do meu ombro, consigo ver até luzes da cidade mais próxima, mas a sensação de isolamento, de falta de controle, de distância, é tão palpável quanto seria se nenhum dos sinais que acabei de descrever estivessem presentes. Sobretudo a falta de controle. Descemos do carro, não sei o que espera dentro da mata, nunca sei. Eu espero por um encontro, qualquer, que pode também não acontecer. Passos fortes e palmas para acusar a chegada. Finalmente, a clareira.
É como… como se outra coisa habitasse aqui. Olho em volta, trezentos e sessenta graus, silêncio… distância. Existe uma certa sensação de descolamento do corpo, de fragmentação… pedra gelada, sol quente, sombra, horizonte à distância, vegetação, posso andar livremente, posso esticar meu corpo, não conheço os pontos de referência, já não sou sequer capaz de me perder.
A paisagem tem fim?
Mistério é porta aberta pra fazer morada. Rastro é lugar.
Persiste a necessidade de um referencial de distância.
A paisagem tem fim?
Ela começa sempre pelo meio
entre quem observa e aquilo que observa
talvez por isso pareçam tão impenetráveis as paisagens
tão veladas as paisagens
como as palavras, que em um poema adquirem uma nova dicção a cada vez que são lidas.
Só se sabe da própria relação com a paisagem
só se sabe da própria relação com a palavra
há paisagem tocável?
há palavra tocável?
distante, persiste.
As palavras, tocamos com a língua,
as imagens, com os olhos.
Mas não é ilusório esse conceito de toque pela visão?
Sonhei com uma praia escura e silenciosa onde pessoas cegas dormiam dentro do mar.
“Cristais naturais” ou “falar uma palavra é pintar uma pintura”
(um comentário sobre "Critais Naturais", de Francis Ponge)
Acredito que possamos começar pelo fim. Esse texto não tem nada de objetivo e muito menos de linear.
Comecemos então pelo último parágrafo:
“… De modo que basta talvez nomear qualquer coisa, seja qual for - de uma certa maneira - para exprimir tudo do homem…”
Aqui, de alguma forma, parece se conter toda a ideia que o autor trabalha ao longo de sua fala. Essa frase comporta uma dicção - como bem coloca Francis Ponge em seu texto - própria. Dicção no sentido de um tom, de uma maneira de dizer, de uma forma das palavras.
“[…] a maneira de dizer em relação à escolha ou arranjo das palavras. E é claro que nesse segundo sentido, dizer se emprega como equivalente senão de escrever… mas enfim, o sentido de recitar em voz alta se perde, nesse caso - e dizer significa aqui exprimir por palavras, pelo discurso.”
Acredito que possamos começar pelo fim. Esse texto não tem nada de objetivo e muito menos de linear.
Comecemos então pelo último parágrafo:
“… De modo que basta talvez nomear qualquer coisa, seja qual for - de uma certa maneira - para exprimir tudo do homem…”
Aqui, de alguma forma, parece se conter toda a ideia que o autor trabalha ao longo de sua fala. Essa frase comporta uma dicção - como bem coloca Francis Ponge em seu texto - própria. Dicção no sentido de um tom, de uma maneira de dizer, de uma forma das palavras.
“[…] a maneira de dizer em relação à escolha ou arranjo das palavras. E é claro que nesse segundo sentido, dizer se emprega como equivalente senão de escrever… mas enfim, o sentido de recitar em voz alta se perde, nesse caso - e dizer significa aqui exprimir por palavras, pelo discurso.”
Então a palavra. A ordem das palavras. O tom que uma palavra adquire estando ao lado de
uma e não de outra. Ou então sozinha. Ela nomeia ou borra o significado? Adquire forma de
nuvem ou de cristal? E não é assim também na imagem?
Ponge opta por dizer que a particularidade da linguagem empregada pelos poetas se da em seu som, em seus sons significativos, que fazem parte de um sistema significante, o que concede às palavras uma peculiaridade, a de que, apesar de se encontrarem em um sistema de significantes, elas jamais comportam apenas um objeto do mundo. Retornamos então à dicção? Em seu sentido verbal, de uma dicção que pode ser pesada, arrastada ou exclamatória e saltitante, o autor coloca que os sons saem de nossas bocas para exprimir nossos sentimentos, e não somente para ocuparem seu papel no conhecido sistema de significantes, os sons não somente nomeiam os objetos.
Ponge opta por dizer que a particularidade da linguagem empregada pelos poetas se da em seu som, em seus sons significativos, que fazem parte de um sistema significante, o que concede às palavras uma peculiaridade, a de que, apesar de se encontrarem em um sistema de significantes, elas jamais comportam apenas um objeto do mundo. Retornamos então à dicção? Em seu sentido verbal, de uma dicção que pode ser pesada, arrastada ou exclamatória e saltitante, o autor coloca que os sons saem de nossas bocas para exprimir nossos sentimentos, e não somente para ocuparem seu papel no conhecido sistema de significantes, os sons não somente nomeiam os objetos.
Me pergunto se o mesmo não ocorre na pintura.
E me pergunto o que tudo isso tem a ver com cristais. E porque, para falar de palavras e significâncias, Ponge se vale da imagem disforme da luz contida em um cristal.
Talvez então, a contensão. O que comporta um cristal?
Imagem da luz contida em um cristal.
A estrutura do cristal, pois, não tem nada de disforme, e como coloca o próprio autor, se dá no encadeamento de átomos iguais que ligados entre si pelas mesmas relações, em seu acúmulo, nos mostra sua forma primeira, ao mesmo passo que parecem aprisionar ali certa luz.
“[…] Talvez porque tenhamos aí algo assim como as melhores aproximações concretas à realidade pura, quer dizer, à ideia pura […]”
Como as palavras, capazes de aprisionar significâncias extensas, os cristais comportam também uma rede de relações.
Depois de ler esse texto, minha primeira anotação foi a seguinte:
“Falar uma palavra é pintar uma pintura.”
Certa vez um professor me disse que minhas pinturas eram como biografemas daquilo que eu observava. Ele é escritor.
Biografema, noção encontrada em Roland Barthes, é como que uma escritura que comporta o que poderia ser a dicção de Ponge, mas não necessariamente aplicada às palavras, mas aplicada às coisas do mundo. É uma escrita que se apresenta em forma de notação do tom das coisas do mundo, da subjetividade das coisas do mundo, como a subjetividade comportada no som que passa pela garganta de quem fala. No caso de Barthes, uma notação que comporta o tom dos autores que analisa. Me parece que essa ideia pode ser aplicada a diversas linguagens, uma delas, a pintura, que como na língua, cria um sistema de significantes.
Anne Cauquelin diz que a paisagem acontece por aproximação. Por relação, então. Por fricção. Por pigmento que encontra outro pigmento e já não é mais somente matéria, como a palavra nunca é sem dicção.
Então a paisagem, a pedra e o cristal. O mutismo das coisas, e a forma como elas adquirem voz, ou a forma como quem observa uma pintura dá voz às coisas, assim como quem lê um poema dá dicção às palavras.